Sexta-feira, 2 de Abril de 2010

(...)Foi então que o seu amigo Pátrocles implorou a Aquiles que lhe emprestasse a armadura e que o deixasse conduzir os Mirmidónes, no que Aquiles consentiu. Pátroclesfoi morto pelo príncipe troiano Heitor, e Aquiles voltou à batalha para vingar o amigo, matando Heitor. Depois liderou os Gregos para mais um ataque às muralhas de Tróia, sendo atingido mortalmente por Páris, irmão de Heitor, com uma seta, que, guiada por Apolo, atingiu o calcanhar de Aquiles. (...) in https://www.infopedia.pt/$lenda-de-aquiles

 

Toda a gente tem um destes, que normalmente não é suficiente para matar (felizmente), mas que mói, e dói e desgasta. Depois há todos os outros calcanhares de Aquiles mais pontuais, que aparecem e desaparecem, e não têm o cariz de permanência e a carga da eternidade. Mas não é desses que quero "falar" hoje. Porque "falar" ou escrever pode ser terapêutico, hoje eu quero fazê-lo acerca do MEU calcanhar de Aquiles. Aquele que me lembro desde sempre, aquela seta escondida entre o osso e a carne, que dói quando se calca, e com a qual acaba por se aprender a andar, porque, caso contrário, teríamos que ficar imobilizados.

 

Este post estava em rascunho deste o fim do mês de Janeiro. Fiquei presa nele e já não consegui escrever grande coisa. Escrever sobre o meu calcanhar de Aquiles bloqueia-me ...

 

Mas comecemos pelo início, mesmo lá nos primeiros tempos, em que encetamos a consciência de nós próprios e dos outros; vou até onde a memória chega, no tempo em que percebi que há um corpo que nos permite estar neste mundo. Não sei se acontece com toda a gente, mas do que me lembro, não foram o espelho, ou o reflexo nos vidros, que me permitiram reconhecer as minhas formas neste mundo. O meu espelho e os meus reflexos foram as frases, tantas vezes ouvidas, dos grandes, que diziam "oh tão gordinha" "ai que forte que ela é, sai ao pai"ou "ai que redondinha, que bela moça"... Não me lembro de me elogiarem o cabelo loiro cheio de canudos, os olhos castanhos esverdeados ou o sorriso rasgado (o que não quer dizer que não o tenham feito, mas a memória é selectiva e muitas vezes escolhe errado o que guarda).

E cresci assim, como a menina gordinha, igualita ao pai, e que comia tão bem! Aos 6 anos nasceu a minha irmã, e nasceu magra. A relativização e a comparação entre irmãs adensou os comentários. A mana era a modelo e eu continuava a ser a fortezinha.

 

Aprendi a baixar a cabeça e a sentir-me mais pequenina por dentro, porque era maior por fora. Habituei-me a não gostar de mim, mas a gostar muito de comer. E comia, comia, comia... Almoçava várias vezes, em várias casas, no mesmo dia e devorava bolachas de chocolate enquanto via a novela. As opiniões dos grandes dividiam-se e deixavam-me confusa: uns diziam que era bom comer tão bem e achavam graça ao apetite da menina; outros continuavam a achar que estava gorda, ou forte (o típico eufemismo para os gordos).

Entrei na adolescência e comecei a comer menos. No entanto, a mentalidade manteve-se. Emagreci sem esforço e sem perceber, porque para mim era e sempre seria forte. Hoje, quando me vejo em fotografias antigas percebo o quanto estava deturpada. Não, nunca fui magra, mas também não era gorda, nem forte. Mas eu tinha aprendido a sê-lo, essa era a minha forma de estar no mundo e não sabia fazê-lo de outra forma. Perdi muita coisa pelos complexos que tinha entranhados, que me angustiavam a existência. Sempre achei totalmente impossível alguém se interessar por mim, despertar desejo ou atracção era tão impensável como usar biquini. A barriga era o centro do meu mundo, não por lá se encontrar o umbigo, mas porque era grande, gorda e branca. E eu abominava-a a ela e a todo o corpo que se desenvolvia a partir dela. Podia ficar aqui linhas sem fim a escrever o que não vivi porque não me dei esse direito, ou porque só o iria viver quando estivesse mais magra. Mas não vou fazê-lo.

 

Chega a Universidade e chegam efectivamente, os distúrbios alimentares. Porque distúrbio alimentar não são só as mediáticas anorexia e bulimia. Existem outros para além destes, e o meu chama-se compulsão alimentar. É uma espécie de bulimia, mas sem vómito. É uma total perda de controlo perante a comida, em que se come tudo ao que se possa ter acesso e se for necessário vai-se comprar mais comida a qualquer sitio, a qualquer hora. Lembro de comprar caixas de donuts e madalenas de laranja, antes de sair de Évora, e em Portel já tinha comido tudo. Depois parava no Modelo de Beja e comprava mais doces ou salgados ou até os dois, e continuava a comer o resto da viagem. Tentei muitas vezes vomitar e nunca consegui. Desejei tanto ser anorética, tomei laxantes, e nos dias seguintes tentava não comer quase nada. Mas mais tarde ou mais cedo voltava a ter uma crise. Podiam ser dias de seguida, podiam ser várias vezes por semana, podia ser de tantas formas...

Engordei cerca de 10kg durante o primeiro ano, de forma rápida. Razões para o descontrolo... não sei! Talvez a adaptação, talvez a novidade, talvez o ter que construir o meu mundo sozinha... No fundo, não preciso de razões concretas ou conscientes para compensar a tristeza, a angústia, a solidão, a preocupação, ou por vezes nenhuma destas coisas, com um armário cheio de porcarias comestíveis.

Embora eu tivesse vergonha de existir no meu corpo (e isto dói só de pensar, quanto mais escrever) consegui não deixar nunca que isso afectasse as minhas amizades. Por um milagre, eu continuava a conseguir ter amigos, cuidar deles e das nossas relações, e a sair, a divertir-me. Os complexas sempre lá estiveram, mas era como aquelas dores de cabeça que latejam permanentemente, mas que não nos impedem de trabalhar. O mesmo não acontecia relativamente às relações amorosas. Este continuava a ser terreno proibido para alguém com peso acima do que deveria ter. E apesar de uma ou outra experiência que foi tentando mostrar o contrário, relações, flirts e afins eram coisas que guardava, quase religiosamente, para quando fosse magra.

Sempre lutei contra isto, nunca me resignei ao peso, nunca lidei com a questão de ânimo leve. Metade da minha vida era em dieta, a outra metade a comer descontroladamente. Pouco era o tempo de equilíbrio. Entretanto fiz alguns regimes bem sucedidos, depois dos quais engordava, mas sempre de forma diferente, e isso foi-me dando um pouco mais de auto-estima.

 

Agora estou na longa aprendizagem de me amar fisicamente, tal e qual como estou, mesmo que esteja com mais 10kg do que deveria estar. Isto não significa não querer perder-los, ou não me esforçar por isso. Significa sim nunca mais baixar a cabeça, nunca mais vestir as calças de fato de treino e a maldita blusa de malha polar que me acompanha desde o 9º ano, para as alturas de crise, quando não tenho roupa nenhuma que me sirva, e não me apetece, simplesmente, existir. Aceitar-me significa não adiar mais nada na minha vida porque tenho peso a mais, significa ser grata pelo corpo que tenho, por tudo aquilo que ele me permite e amar-me acima de qualquer outra coisa ou pessoa. E significa também encarar os quilos que engordei, encarar as noites em que me deito a abarrotar, em que acordo, penso no que fiz, e não consigo mais dormir; encarar as fotografias com a cara ainda mais redonda; encarar os olhares, as frases e até os pensamentos que imagino que os outros têm acerca de mim (porque eu também os tenho acerca dos outros); encarar os dias de desespero e de frustração, em que o choro parece que me arranca as entranhas, porque esta é um luta tão dura, e dura há tanto tempo....

 

Lutar contra uma coisa tão natural como a comida é profundamente difícil, porque temos que achar o equilíbrio. Um fumador não precisa de tabaco para viver, um toxicodependente sobrevive sem droga, um viciado em jogo é saudável sem o jogo. Os mecanismos do vicio, da adição, das crises e das recaídas são os mesmos. Mas os "viciados" em comida não podem viver sem comer. E por isso nós temos que enfrentar o nosso "monstro" a todas as horas do dia, 365 dias por ano. E, como qualquer "viciado", temos que fazer face à incompreensão das frases feitas dos outros: "come só um bocadinho. Um bocadinho não te vai fazer mal", ok, mas eu não consigo comer só um bocadinho, porque sei que depois daquele bocadinho me vai apetecer muito mais; "mas como é que não te consegues controlar? Basta teres força de vontade" pois... muitas vezes não basta ter força de vontade. E todos os clichès ditos pelos outros, de forma mais maldosa, ou com a melhor das intenções, são agulhas, são facas, são estalos... são dor. E a dor faz-nos comer, porque por minutos, o prazer da comida distrai essa mágoa, porque por momentos o vazio é cheio. Não suportar a forma como se existe no mundo é inexplicavelmente doloroso. Saber que mudar isso depende quase exclusivamente de nós é ainda mais. Para quem não percebe é simples... Para mim também seria simples dizer a um esquizofrénico que aquelas vozes não existem, dizer a um fumador que o tabaco deixa mau hálito, os dentes amarelos e a pele envelhecida, ou a um toxidependente que a droga é perfeitamente dispensável, ou que até a pode ter em quantidade moderadas, numa ou outra noite de loucura, e num fim, dizer a todos eles, "só é preciso força de vontade". E do que vale isto? Absolutamente nada!

 

Estou em terapia, e percebi que eu não preciso de força de vontade. Eu preciso tão simplesmente de gostar de mim! Dão-se muitos passo à frente e outros tantos atrás, mas hoje eu gosto de mim, mesmo com peso a mais. Hoje eu  não deixo que ninguém me convença que não sou bonita, porque sou. E não saio de casa sem pintar os olhos, desfiz-me dos sapatos rasos e ténis, bem como das calças largas e das blusas "my basics" todas iguais, mas de cores diferentes. Rio alto, como sempre gostei de fazer e uso decotes, estou-me nas tintas se dou nas vistas, por boas ou más razões. E já não faço ouvidos moucos ou sorrisos amarelos a quem me diz "estás mais gordinha", mas respondo à letra, porque tenho espelhos em casa e não tenho falta de vista. E acima de tudo quero viver tudo o que não vivi e não voltar a deixar nada para "quando estiver mais magra". Nem sempre estou em alta, isto não é verdade todos os dias, mas é na grande maioria deles, e um dia hei-se encontrar o meu equilíbrio e a paz de espírito que necessito, relativamente a este calcanhar de aquiles.

 

 

Este foi o post mais difícil de escrever, e vai ser o mais difícil de clicar em "publicar". Mas publico porque é uma das minhas formas de terapia, a escrita, e porque eventualmente haverá mais pessoas que se identifiquem com este texto. Mas essencialmente porque esta é mais uma forma de assumir o problema, e assumir o problema é lutar por encontrar uma solução! 



apoquentado por Béu às 14:51 | linque da apoquentação | mandar pitafe

12 pitafes:
De JoanaC. a 6 de Abril de 2010 às 13:11
tipo, eu queria comentar mas estava com medo, porque pa dizer porcaria mais vale estar calada...

mas o facto é que acho que foste muito corajosa em publicar isto e acho que fizeste muito bem em fazê-lo. Aprendemos muito com os outros, sabes?

já tá: beijinho :)


De Béu a 6 de Abril de 2010 às 13:22
medo infundado! Sabes que normalmente quem diz porcaria é quem nem sequer concebe a possibilidade de fazê-lo! :) As pessoas que normalmente pensam que podem dizer porcaria, tem a sensibilidade de não o fazer! :)
Obrigada e uma beijinho grande!


De João Nicolau a 12 de Abril de 2010 às 23:05
Parabéns pelo incisivo post. Acredito que só te faça bem escrever e desabafar.

Força nessa luta, nunca desistas do que és ou acreditas.

ps: sou leitor desde que passou na comercial

Beijinhos
João Nicolau


De Béu a 12 de Abril de 2010 às 23:22
Muito obrigada pelo teu comentário, e por seguires o blog!


De Não digo quem sou, nem que me batam a 14 de Abril de 2010 às 19:53
Estou de lágrimas nos olhos... porque não só não comecei apenas a ler o blog desde que passou na comercial, como também és das pessoas mais importantes da minha vida. E hoje, pela primeira vez, li pormenores que não sabia existirem.

Adoro-te por usares decotes descarados sem querer saber da opinião dos outros.

Adoro-te porque te ris em voz alta. E rio às gargalhadas contigo. Aliás, choro de tanto gargalhar.

Amo-te e sei que te amarei a vida toda :)

Obrigada por fazeres parte desta minha caminhada e, mais do que isso, por me dares o privilégio de fazer parte da tua caminhada.

Eternamente tua,
Gadjet


De Béu a 14 de Abril de 2010 às 20:15
Também me deixaste de lágrimas nos olhos magana! Espero que tenhas noção que muitas vezes, provavelmente até sem perceber, me ajudaste nesta luta... Porque eu sei que acreditas em mim! E fazes parte de mim, de uma forma muito especial.
Eu sei que está aqui... *


De Ana Telles a 19 de Abril de 2010 às 21:38
... Não consigo exprimir aquilo que sinto e o que senti ao ler este post ... Identifico-me profundamente com ele... Foi um dos posts mais intensos e profundos , repleto de sentimentos... que me pôs que nem uma "madalena" á medida que ia lendo... Enfim só posso dizer-te que Adorei minha linda!!! Acredita que é realmente preciso muita coragem para publicares esta história...
És muito especial para mim... Gosto muito de ti minha linda!!!
Beijokas
Ana Telles:)


De Béu a 20 de Abril de 2010 às 19:03
E tu também és muito especial para mim... :) Um beijinho muito doce *


De Ana Filipa a 22 de Abril de 2010 às 00:25
Este é o post que eu podeira ter escrito e nunca o fiz. Revejo-me em tantas das coisas escritas...tantas mesmo...e a quantidade de situações coincidentes.
Posso dizer que comecei a seguir o blog quando uma amiga viu este blog nos destaques do sapo e me disse: "Tu tens um blog no sapo? É que se não és tu..pareces."
A minha luta do "se eu não gostar de mim, quem gostará" tb já se iniciou. Tem os seus altos e baixos, mas estou firme a seguir em frente! Força na tua "luta" também! *

PS- "Adoro" quando me dizem: "Come lá este bolinho. É só hoje!" Quantos "é só hoje" se ouvem ao longo do dia, da semana...? São também, por vezes, as mesmas pessoas que dizem "devias ter cuidado com o que comes, tás mais forte".


De Béu a 22 de Abril de 2010 às 08:38
Muito obrigada pelo teu comentário.Sabes que eu escrevi este post primeiro porque é terapêutico para mim escrever, e há muito que o queria ter feito, mas acho que temos que estar preparados para escrever e/ou falar dos nossos calcanhares de aquiles; mas também porque acho que haveria de existir quem passasse por cá e se identificasse, porque a comida é uma questão complicada na vida de muita gente, de uma ou outra forma. E saber que há quem sinta mais ou menos o mesmo que nós, dá-nos pelo menos o conforto da companhia :)
O bom de tudo isto é decobrir a questão do "se eu gostar de mim, quem não gostará?" (troco a frase para deixar o "não" para os outros), e perceber que há todo um admirável mundo novo. Por mais altos e baixos que tenhamos, esta descoberta muda tudo.
Como diria o Jorge Palma, "enquanto houver estrada p'ra andar, a gente vai continuar" :) *


De Não digo quem sou, nem que me batam a 23 de Abril de 2010 às 22:09
Simi,

tens uma coragem inegualável e que muito admiro em ti.

Apesar de ter partilhado momentos desta luta, fiquei de lágrima no olho e feliz por tantos passos que deste de forma positiva nesta tua caminhada.

Adoro-te para toda a vida e admiro-te muito, por quem és! Todos nós temos os nossos calcanhares de Aquilles, mas poucos a coragem de os ir resolvendo e torná-los públicos de forma a que a experiência não seja só util para nós mas também um passo para outros.

Abraço tão forte que te amolgue durante dois dias

Cassi


De Béu a 24 de Abril de 2010 às 09:54
Oh minha simi do coração, eu gosto tanto de ti e sinto tanto a tua falta... tanto...

*


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